sábado, 1 de dezembro de 2012

Sobre Vieira








Um artigo de Guilherme d'Oliveira Martins publicado no nº 36 da Revista Nova Cidadania, em 2008

Os Combates do Padre António Vieira





Comemorar o padre António Vieira significa invocar a memória de alguém que combateu pela liberdade e pela dignidade humana com todas as suas forças e para além daquilo que o seu tempo ajuizava. E é impressionante, à distância, nos dias de hoje, verificar como o pensamento do orador sagrado e do diplomata, apesar de marcado pelo tempo, pode ser compreendido por nós, quatro séculos depois…

Muito se tem dito sobre o Padre António Vieira e ressalta sempre a sua qualidade única de «Imperador da Língua Portuguesa», segundo a expressão do exigente Fernando Pessoa, que nunca regateou elogios à força extraordinária de alguém que foi muitíssimo mais do que um pregador («No imenso espaço seu de meditar,/ Constelado de forma e de visão…»). Com o Padre Vieira, estamos perante a maturidade da língua portuguesa em prosa, cuja leitura nos dias de hoje continua a encher-nos de emoção. Foi um visionário, um diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um lutador pelo respeito da dignidade humana, à frente do seu tempo, e um artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita. Sente-se, em cada expressão, em cada ideia, a força mágica dos encadeamentos, das repetições, das sinonímias, das contradições, dos paradoxos, das metáforas, dos símbolos, dos conceitos, do ponto e do contraponto, da proximidade e da distância (leia-se o imprescindível A Oratória Barroca de Vieira, de Margarida Vieira Mendes, Caminho, 2003).

Vieira não se resume, nem se limita ao culto de palavras e de ideias, por detrás desse jogo aparente está uma corajosa defesa de ideias e de causas, que, pela sua determinação e persistência, lhe foram causando os maiores dissabores e os piores contratempos. A sua obra «é inquestionavelmente uma das manifestações mais altas da capacidade criadora do espírito lusíada, na qual estranhamente se fundem o sonho e a realidade…», no dizer de Aníbal Pinto de Castro (António Vieira, Uma Síntese do Barroco Luso-Brasileiro, 1997). E é preciso ter uma força muito especial para poder manter-se actual quatro séculos depois do seu nascimento. E se digo actual, uso a palavra com o cuidado devido: não significa que possamos repetir agora o que foi dito por ele no século XVII, quer antes dizer que podemos hoje compreender, ressalvadas as distâncias de tempo e mentalidades, o que visava o padre, o orador ou o conselheiro. E percebemos bem que o que dizia e o que pensava estava muito à frente do que entendiam os seus contemporâneos (cf. João Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, Lisboa, 1918-1920).

O Padre Vieira foi um homem que procurou sempre pautar-se pela antecipação e pelo critério do futuro, demandando respostas para um transe muito difícil vivido na sua época pelos portugueses (recuperação da independência, fragilidade do novo poder, acumulação de ameaças externas no contexto da Guerra dos 30 Anos). Como pregador precisava de seduzir e de mobilizar vontades, quando a sociedade estava dividida e perplexa. O império temporal vinha-se esboroando, num processo longo que vinha do último quartel do século XVI. As riquezas perdiam-se ou dissipavam-se, os «fumos da Índia» avolumavam-se, havia divisões profundas (bem evidentes na crise dinástica que Vieira sentiu directamente, sobretudo depois do desaparecimento de D. João IV).

Havia, por isso, que reconstruir o império em moldes totalmente diferentes, que não padecessem das enfermidades antigas. E um império consistente, teria de ser espiritual, para ser motivador e tentar combater os males da corrupção do poder e do dinheiro. E vinha à baila a antiga ideia judaica de «povo eleito» à exigência moderna de encontro e de reconhecimento das diferenças. Eis por que razão a espiritualidade de Vieira procura ser aberta aos outros e ao futuro. E no entanto nota-se o risco, que mais tarde se revelará (na história das «reduções jesuíticas», por exemplo), de um choque de projectos políticos, o do reino e o da companhia. Esse risco sente-o o próprio Vieira, ora por incompreensão política e pelo sobe e desce dos poderes, ora por ameaça dos interesses e por falta de meios para agir.

Hoje diríamos que havia uma estratégia segundo a qual seria necessário compatibilizar o humanismo universalista e uma nova ideia de império. E o Padre António Vieira retoma então o que os franciscanos espirituais (ou antes deles os joaquimitas) há muito defendiam, também sob a invocação do Espírito Santo. E falando de audácia e atrevimento, basta lembrar o poderoso «Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda», dito na Igreja baiana de Nossa Senhora da Ajuda, em Maio ou Junho de 1640 («arrependei-vos misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os olhos da vossa piedade, ide à mão da vossa irritada justiça, quebre vosso amor as setas da vossa ira, e não permitais tantos danos e tão irreparáveis»). Mas os exemplos multiplicam-se, com especial subtileza.

O jesuíta atraiu e acumulou ódios, que juraram pela sua pele, primeiro entre os colonos brasileiros, depois na Corte, entre os invejosos do lugar proeminente que assumiu junto de D. João IV, alvitrando, aconselhando e agindo, e ainda na Inquisição, pela qual foi perseguido, julgado, preso e, por fim, perdoado apenas graças à intercessão papal… Leia-se o Sermão da Dominga Vigésima Segunda depois do Pentecostes (1649), onde, partindo de S. Mateus («É lícito ou não pagar o imposto a César?», 22,17), verbera a hipocrisia dos fariseus, ataca o fanatismo cego e sem caridade, e lembra os escrúpulos falsos de Pilatos, sempre a pensar nos inquisidores: «Ó julgadores que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos e tão graves escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras, e cuidais cegos, e estúpidos, que essas mãos com que escreveis as tenções e com que firmais as sentenças, se podem lavar com uma pouca de água. Não há água que tenha tal virtude».

Nunca fugiu das dificuldades nem da denúncia dos erros e atropelos, como se vê bem no Sermão do 5º Domingo da Quaresma, dito no Maranhão: «E se as letras deste abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente…». Os Sermões de Santo António aos Peixes, dito ainda no Maranhão, da 3ª Dominga da Quaresma e da Sexagésima, pregados na Capela Real, e do Bom Ladrão, apresentado na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), de 1654 e 1655, são bem ilustrativos da coragem acusatória de Vieira contra abusos e injustiças: «Encomendou el-Rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava em todos dos modos…».

Com a Guerra dos 30 Anos a finar-se, havia que preparar um alinhamento que permitisse uma presença segura de Portugal na nova balança europeia. Tudo iria mudar nas legitimidades e no modo de organizar os Estados. Vieira, entre o sonho e a realidade, propõe um novo modo de agir. E a justificação espiritual (que a Inquisição considerou heresia) poderia abrir novos horizontes, sobretudo através da criação de bases sólidas no Brasil e na Índia. A legitimidade da força tinha de ceder perante a legitimidade do espírito.

Assim, o Quinto Império não era um sonho desligado da realidade nem uma ilusão centrada no território da loucura, era uma tentativa de regresso à epopeia de quinhentos, com um repensamento estratégico, que tirasse lições dos erros cometidos. Daí o recurso à imagem do livro de Daniel da estátua que «tinha a cabeça de ouro fino, o peito e os braços de prata, o ventre e as ancas de bronze, as pernas de ferro, os pés metade de ferro e metade de barro» (Dan. 2,32) e ao prenúncio de um quinto império (frágil e forte, como o ferro e a argila), que jamais seria destruído. Assim foi concebida a História do Futuro, antecipada pelo Sermão dos Bons Anos (1.1.1642), onde as Escrituras, as profecias de S. Frei Gil de Santarém e as Trovas do Bandarra levaram-no a transferir o mito do Desejado de um rei morto em Alcácer-Quibir (Sebastião) para um rei vivo (João, ali presente na Capela Real). Seria nesse império que se reuniriam todos os povos sob a égide do Vigário de Cristo e sob um mesmo governo temporal do Rei de Portugal…

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