Vieira no Brasil
O padre António Vieira (1608-1697) desembarcou em São Luís do Maranhão,
em 16 de janeiro de 1653, à frente de pequeno grupo de padres. A cidade
abrigava cerca de 600 famílias e colonos vivendo em palhoças. A grande
maioria dos historiadores considera que Vieira se imbuiu do maior
espírito missionário possível no longo período em que atuou como
Superior das aldeias jesuíticas no norte. É verdade.
Entre 1653 e 1661, Vieira percorreu extenso território visitando Belém
do Pará, a serra de Ibiapaba no Ceará e diversas partes do Maranhão.
Viajava em comboios de canoas protegidas por índios flecheiros, atentos a
qualquer ruído que sinalizasse a presença de inimigos. Era uma
navegação perigosa na imensidão dos rios amazónicos, silêncio apenas
rompido pelo barulho dos bichos. Vieira já era veterano de viagens
perigosas no mar, entre tempestades e corsários, mas não conhecia nada
daquele mundo de riachos, canais e igarapés que adornavam o Tapajós, o
Tocantins e o Amazonas, rio-mar, em cuja foz os grandes rios
desembocavam.
A correspondência de Vieira, aqui e ali, demonstra a melancolia de seu
estado de espírito, sobretudo nos primeiros meses, ainda que nas cartas
oficiais ao rei ou autoridades jesuíticas prevalecesse o ânimo
missionário e a postura combativa. Para quem tinha percorrido metrópoles
europeias, com seus palácios e monumentos, discutindo em Paris ou Haia
elevadas questões de Estado, aquele mundo silvestre era quase uma
provação. Com o passar do tempo, Vieira se habituou àquela vida rústica e
por vezes até se vangloriou de passar por tudo aquilo, quase um
martírio.
No Maranhão, dedicou-se obsessivamente a construir a missionação e a
combater o ânimo esclavagista dos colonos durante o dia. À noite,
estudava as profecias de Bandarra (1500-1556), sapateiro e profeta
português que escreveu trovas de caráter messiânico. Quase nada no mundo
parecia sensibilizá-lo, fosse a natureza exuberante, como no Brasil,
fosse a beleza arquitectónica, como nas cidades europeias. Gostava de
ler, escrever e discursar no púlpito, além de negociar assuntos
espinhosos em gabinetes fechados com poderosos.
Apesar de sua experiência de campo ser modesta, António Vieira tinha
inegáveis qualidades para organizar a missionação dos índios do norte.
Havia quase um quarto de século que não pisava em aldeamentos indígenas,
mas sua capacidade de liderança compensava. Os padres da missão
maranhense obedeciam cegamente às suas ordens, muitos orgulhosos, todos
maravilhados em ter um comandante daquela estirpe. Atuou antes de tudo
como supervisor, estrategista da missionação, nem tanto como catequista.
Vieira alertava os bravos missionários dos perigos daquela
“dificultosíssima empresa”, porém lembrava que a morte em martírio era o
que de melhor se poderia esperar desta vida.
António Vieira exprimia, na verdade, uma versão radical do jesuitismo
missionário, empenhado em destroçar os costumes e crenças indígenas.
Os seus colegas pensavam do mesmo modo, embora tentassem compreender as
línguas nativas, os símbolos, os costumes, como fez Anchieta, para
utilizá-los a favor da missão. A diferença é que muitos deles
conseguiram ultrapassar a fronteira da divergência cultural a ponto de
pensarem nos costumes nativos como regras a serem aprendidas. Vieira não
chegou a tal ponto. Não saiu da trincheira católica e só se dedicava a
estudar os costumes nativos com propósitos instrumentais.
Há registo, porém, não se sabe se verdadeiro ou lendário, que chegou a
compor um catecismo em seis línguas diferentes, além de um diálogo
evangelizador, similar ao Diálogo sobre a conversão do gentio,
do padre Manuel da Nóbrega (1517-1570), que chefiou a primeira missão
jesuítica na América. Mas tanto o catecismo plurilinguístico como o tal
diálogo desapareceram.
Vieira não abandonou, portanto, a velha estratégia
de conquistar a alma indígena por meio de símbolos da cultura nativa.
Chegou a recomendar, em uma carta de instrução, que se deviam incorporar
máscaras e cascavéis nas danças das procissões, “para mostrar os
gentios que a lei dos cristãos não era triste”. Recomendou muita pompa
nos batismos, sempre “necessária aos olhos da gente rude, que só se
governa pelos sentidos”, muita tinta nos sepulcros. O padre acreditava
que os índios apreciavam tudo que fosse colorido.
Ronaldo Vaifnas
Consultar o texto integral em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/o-paiacu-dos-indios
Sem comentários:
Enviar um comentário