Um artigo de Guilherme d'Oliveira Martins publicado no nº 36 da Revista Nova Cidadania, em 2008
Os
Combates do Padre António Vieira
Comemorar o padre António Vieira significa invocar
a memória de alguém que combateu pela liberdade e pela dignidade humana com
todas as suas forças e para além daquilo que o seu tempo ajuizava. E é
impressionante, à distância, nos dias de hoje, verificar como o pensamento do
orador sagrado e do diplomata, apesar de marcado pelo tempo, pode ser
compreendido por nós, quatro séculos depois…
Muito se tem dito sobre o Padre António Vieira e
ressalta sempre a sua qualidade única de «Imperador da Língua Portuguesa»,
segundo a expressão do exigente Fernando Pessoa, que nunca regateou elogios à
força extraordinária de alguém que foi muitíssimo mais do que um pregador («No
imenso espaço seu de meditar,/ Constelado de forma e de visão…»). Com o
Padre Vieira, estamos perante a maturidade da língua portuguesa em prosa, cuja
leitura nos dias de hoje continua a encher-nos de emoção. Foi um visionário, um
diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um
lutador pelo respeito da dignidade humana, à frente do seu tempo, e um
artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita. Sente-se, em cada
expressão, em cada ideia, a força mágica dos encadeamentos, das repetições, das
sinonímias, das contradições, dos paradoxos, das metáforas, dos símbolos, dos
conceitos, do ponto e do contraponto, da proximidade e da distância (leia-se o
imprescindível A Oratória Barroca de Vieira, de Margarida Vieira Mendes,
Caminho, 2003).
Vieira não se resume, nem se limita ao culto de
palavras e de ideias, por detrás desse jogo aparente está uma corajosa defesa
de ideias e de causas, que, pela sua determinação e persistência, lhe foram
causando os maiores dissabores e os piores contratempos. A sua obra «é
inquestionavelmente uma das manifestações mais altas da capacidade criadora do
espírito lusíada, na qual estranhamente se fundem o sonho e a realidade…», no
dizer de Aníbal Pinto de Castro (António Vieira, Uma Síntese do Barroco
Luso-Brasileiro, 1997). E é preciso ter uma força muito especial para poder
manter-se actual quatro séculos depois do seu nascimento. E se digo actual, uso
a palavra com o cuidado devido: não significa que possamos repetir agora o que
foi dito por ele no século XVII, quer antes dizer que podemos hoje compreender,
ressalvadas as distâncias de tempo e mentalidades, o que visava o padre, o
orador ou o conselheiro. E percebemos bem que o que dizia e o que pensava
estava muito à frente do que entendiam os seus contemporâneos (cf. João Lúcio
de Azevedo, História de António Vieira, Lisboa, 1918-1920).
O Padre Vieira foi um homem que procurou sempre
pautar-se pela antecipação e pelo critério do futuro, demandando respostas para
um transe muito difícil vivido na sua época pelos portugueses (recuperação da
independência, fragilidade do novo poder, acumulação de ameaças externas no
contexto da Guerra dos 30 Anos). Como pregador precisava de seduzir e de
mobilizar vontades, quando a sociedade estava dividida e perplexa. O império
temporal vinha-se esboroando, num processo longo que vinha do último quartel do
século XVI. As riquezas perdiam-se ou dissipavam-se, os «fumos da Índia»
avolumavam-se, havia divisões profundas (bem evidentes na crise dinástica que
Vieira sentiu directamente, sobretudo depois do desaparecimento de D. João IV).
Havia, por isso, que reconstruir o império em
moldes totalmente diferentes, que não padecessem das enfermidades antigas. E um
império consistente, teria de ser espiritual, para ser motivador e tentar
combater os males da corrupção do poder e do dinheiro. E vinha à baila a antiga
ideia judaica de «povo eleito» à exigência moderna de encontro e de
reconhecimento das diferenças. Eis por que razão a espiritualidade de Vieira
procura ser aberta aos outros e ao futuro. E no entanto nota-se o risco, que
mais tarde se revelará (na história das «reduções jesuíticas», por exemplo), de
um choque de projectos políticos, o do reino e o da companhia. Esse risco
sente-o o próprio Vieira, ora por incompreensão política e pelo sobe e desce
dos poderes, ora por ameaça dos interesses e por falta de meios para agir.
Hoje diríamos que havia uma estratégia segundo a
qual seria necessário compatibilizar o humanismo universalista e uma nova ideia
de império. E o Padre António Vieira retoma então o que os franciscanos
espirituais (ou antes deles os joaquimitas) há muito defendiam, também sob a
invocação do Espírito Santo. E falando de audácia e atrevimento, basta lembrar
o poderoso «Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da
Holanda», dito na Igreja baiana de Nossa Senhora da Ajuda, em Maio ou Junho de
1640 («arrependei-vos misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em
nós os olhos da vossa piedade, ide à mão da vossa irritada justiça, quebre
vosso amor as setas da vossa ira, e não permitais tantos danos e tão irreparáveis»).
Mas os exemplos multiplicam-se, com especial subtileza.
O jesuíta atraiu e acumulou ódios, que juraram pela
sua pele, primeiro entre os colonos brasileiros, depois na Corte, entre os
invejosos do lugar proeminente que assumiu junto de D. João IV, alvitrando,
aconselhando e agindo, e ainda na Inquisição, pela qual foi perseguido,
julgado, preso e, por fim, perdoado apenas graças à intercessão papal… Leia-se
o Sermão da Dominga Vigésima Segunda depois do Pentecostes (1649), onde,
partindo de S. Mateus («É lícito ou não pagar o imposto a César?», 22,17),
verbera a hipocrisia dos fariseus, ataca o fanatismo cego e sem caridade, e
lembra os escrúpulos falsos de Pilatos, sempre a pensar nos inquisidores: «Ó
julgadores que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos e tão graves
escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras, e cuidais cegos, e estúpidos, que
essas mãos com que escreveis as tenções e com que firmais as sentenças, se
podem lavar com uma pouca de água. Não há água que tenha tal virtude».
Nunca fugiu das dificuldades nem da denúncia dos
erros e atropelos, como se vê bem no Sermão do 5º Domingo da Quaresma, dito no
Maranhão: «E se as letras deste abecedário se repartissem pelos Estados
de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M
Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e
sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os
pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente…». Os
Sermões de Santo António aos Peixes, dito ainda no Maranhão, da 3ª Dominga da
Quaresma e da Sexagésima, pregados na Capela Real, e do Bom Ladrão, apresentado
na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), de 1654 e 1655, são bem
ilustrativos da coragem acusatória de Vieira contra abusos e injustiças: «Encomendou
el-Rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da
Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo
escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia
se conjugava em todos dos modos…».
Com a Guerra dos 30 Anos a finar-se, havia que
preparar um alinhamento que permitisse uma presença segura de Portugal na nova
balança europeia. Tudo iria mudar nas legitimidades e no modo de organizar os
Estados. Vieira, entre o sonho e a realidade, propõe um novo modo de agir. E a
justificação espiritual (que a Inquisição considerou heresia) poderia abrir
novos horizontes, sobretudo através da criação de bases sólidas no Brasil e na
Índia. A legitimidade da força tinha de ceder perante a legitimidade do
espírito.
Assim, o Quinto Império não era um sonho desligado
da realidade nem uma ilusão centrada no território da loucura, era uma
tentativa de regresso à epopeia de quinhentos, com um repensamento estratégico,
que tirasse lições dos erros cometidos. Daí o recurso à imagem do livro de
Daniel da estátua que «tinha a cabeça de ouro fino, o peito e os braços
de prata, o ventre e as ancas de bronze, as pernas de ferro, os pés metade de
ferro e metade de barro» (Dan. 2,32) e ao prenúncio de um quinto
império (frágil e forte, como o ferro e a argila), que jamais seria destruído.
Assim foi concebida a História do Futuro, antecipada pelo Sermão dos Bons Anos
(1.1.1642), onde as Escrituras, as profecias de S. Frei Gil de Santarém e as
Trovas do Bandarra levaram-no a transferir o mito do Desejado de um rei morto
em Alcácer-Quibir (Sebastião) para um rei vivo (João, ali presente na Capela
Real). Seria nesse império que se reuniriam todos os povos sob a égide do
Vigário de Cristo e sob um mesmo governo temporal do Rei de Portugal…